A Lotaria Genética e Social

Este é o segundo capítulo d’A História das Tuas Opiniões.
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No artigo anterior disse que hoje falaríamos das vantagens da simplificação. Tenho que pedir desculpa porque depois de me sentar para escrever apercebi-me que isto tem potencial para ser muito mais divertido, lógico, e valioso se eu contar a história de forma cronológica.
Esta é a história das tuas opiniões.

De onde veio a tua combinação altamente específica e N-dimensional de opiniões? Para tentar responder a isso vamos ter que começar antes de teres nascido. Siga.

A Lotaria Genética (5min)

Na primeira parte do post anterior esfreguei-te na cara a tua insignificância cósmica tanto no espaço como no tempo. Tenho a dizer que até fui bem querido porque faltou dizer isto:
Não tens mérito quase nenhum naquilo que és.1

Não tens mérito absolutamente nenhum por teres nascido com genes bons para te tornares numa pessoa inteligente, bonita, rápida, com bom ouvido musical, uma enorme tendência para desenvolver micose, ou qualquer outro talento ou limitação.
A primeira lotaria da vida é a lotaria genética.

Quando a tua mãe biológica ainda era um feto desenvolveu 6 milhões de óvulos diferentes,2 cada um desses óvulos continha uma combinação única dos genes dela. Alguns óvulos continham genes que se traduziriam nos olhos do teu avô materno, outros nos olhos que te calharam. Outros óvulos continham genes que se traduziriam na forma muito peculiar que uma trisavó materna tua piscava os olhos quando ficava confusa, outros numa tendência para a obesidade, e por aí fora.
Ao longo da vida da tua mãe biológica alguns óvulos foram morrendo, outros foram saindo, e na noite da tua concepção houve UM desses seis milhões de óvulos que estava no sítio certo à hora certa. Metade do teu material genético veio desse óvulo e a probabilidade desse óvulo lá estar foi de UM em SEIS MILHÕES.3

Vamos ao teu pai biológico. Nessa noite, o mais provável é ele ter enviado uns duzentos milhões de espermatozoides em direção a esse óvulo.4 Metade do teu material genético veio de UM desses espermatozoides. Qualquer outro espermatozoide que tivesse ganho a corrida resultaria numa pessoa que não és tu. A probabilidade desse espermatozoide ganhar foi de UM em DUZENTOS MILHÕES.

Para descobrirmos quantas pessoas diferentes podiam ter nascido dessa noite (de amor caliente) temos que descobrir o número de pares possíveis de óvulo-espermatozoide. Para isso basta multiplicá-los. Quando fiz esta conta ontem, sentado na borda da cama, até caí para trás e tive uma espécie de crise existencial misturada com uma gratidão cósmicó-absurda. O resultado é o número aqui em baixo que nem sei dizer direito.5

Este é o número de bolas dentro da roda da tua lotaria genética. É um número tão grande que para o entendermos melhor precisamos de traduzi-lo para coisas mais palpáveis da nossa realidade. Uma boa maneira de começar é reparar que a probabilidade de ganhar o primeiro prémio do Euromilhões é de 1 em 140 000 000. Isso é NOVE MILHÕES DE VEZES mais provável do que os teus pais te terem feito a ti naquela noite.

Outra maneira de tentarmos fazer com que este número faça sentido é imaginarmos que cada combinação possível de óvulo-espermatozoide é uma folha A4 com a fotografia da pessoa resultante.
Antes de olharmos para um número absurdamente grande de folhas, vamos começar por um número que seja apenas muito grande. Que altura teria uma pilha com 1 milhão de folhas de papel A4?6

Um milhão de folhas de papel A4 é muita folha mas ainda assim não chega a ser nem um terço da altura da Torre Eiffel. Assim de repente, como quem não quer a coisa, siga olhar para a distância entre a Terra e a Lua.


Pelo menos na minha cabeça costumo imaginá-los bastante mais perto do que isto. Ainda é bem longe pá. Aliás, entre a Terra e a Lua cabem todos os outros planetas do sistema solar. Curte.


Será que uma pilha de folhas A4 com as fotografias de todas as pessoas que podiam ter sido concebidas naquela noite chegariam da Terra até a Lua?
A resposta é sim…


… 312 vezes!789
312 torres de papel A4 entre a Terra e a Lua sendo que uma folha, de uma das torres contém uma fotografia da tua cara. Todas as outras caras nunca chegaram a existir. Viajámos um bocado mas foi divertido. Se tiverem com tempo leiam a bolinha do fim deste frase, se não sigam em frente.10

Voltemos para a Terra. A lotaria genética rodou e saiu-te uma combinação de genes que vai definir uma grande parte daquilo que tu és. Na história das tuas opiniões vou representar o teu material genético assim:

Tem os olhos um bocado assustadores e um sorriso meio duvidoso. Desenhei-o assim porque o nosso material genético tanto pode ser o nosso maior aliado – em questões de sobrevivência – como pode ser o nosso maior inimigo – em questões mais eruditas como a busca pela verdade.11 Para contarmos a história das tuas opiniões é util fazermos uma distinção entre dois tipos de genes. Os genes essenciais que todos temos em comum estão representados acima pelas linhas horizontais pretas e representam 99,9% dos teus genes. São exactamente iguais aos genes de qualquer outro ser humano no planeta. Toda a diversidade genética maravilhosa que existe na nossa espécie advém de diferenças nos restantes 0,1% que representei com linhas coloridas. São predisposições genéticas para características tuas. Um primeiro rascunho de coisas como os teus maneirismos, os teus talentos, a força do teu sistema imunitário, e até a tua personalidade. Se separarmos esses 0,1% de genes coloridos que te diferenciam de toda a gente podemos introduzir um novo conceito: a tua paleta de cores.

As tuas características genéticas são a paleta de cores com a qual nasceste para pintar o quadro da tua vida. Como na história que estamos a contar ainda és um feto, essas características ainda são um primeiro rascunho bastante baço e mal definido, como na imagem acima. Quando fores adulto vais poder misturar as cores como te apetecer mas uma coisa é certa: se tiveres nascido sem vermelho na tua paleta, nunca vais conseguir pintar um quadro que contenha essa cor. Se vermelho for a combinação de genes (cordas vocais, talento e ouvido) que se traduz numa grande habilidade para cantar, então o quadro da vida do Pavarotti está cheio de vermelho e o teu quadro não vai ter nem uma pinga. Talvez consigas fazer uns traços cor-de-laranja das vezes que cantaste muito inspirado no chuveiro, mas o vermelho – cantares para 60 mil pessoas e levares algumas às lágrimas com a tua voz – nunca vais ter.

A vida não é justa, mas não te esqueças que estares vivo já é incrível – não precisas de cantar como o Pavarotti nem ser tão inteligente como o Einstein para teres uma experiência de vida com significado, bem-estar, e paz interior.

Fico com vontade de deixar aqui uma platitude positiva como “resta-te fazeres o teu melhor com aquilo que te foi dado” mas por uma questão de consistência cronológica vou me conter – até porque na história das tuas opiniões ainda falta algum tempo até teres livre arbítrio e poderes decidir fazer o que quer que seja.

A Lotaria Social (2min)


Pumba. Aquele espermatozoide perfurou aquele óvulo. Contra todas as probabilidades vais ter a oportunidade de ser um feto! Sorte a tua! Mas dentro de que tipo de mãe te encontras? Em que família vais nascer? Da mesma forma que não tens mérito nenhum nos genes que te sairam na lotaria genética, também não tens mérito nenhum na família que te calhou na lotaria social. A tômbola vai voltar a rodar.

Saiu-te a tua família. Na lotaria social podia calhar teres nascido numa família de catadores de lixo que vive no passeio em Calcutá, na família onde realmente nasceste, ou na família real Dinamarquesa. Dentro de qualquer uma das situações anteriores podia sair-te na lotaria social um Tio que te abusa sexualmente, ou uma Avó que puxa pelo melhor de ti. Não escolheste a educação nem classe social dos teus pais. Não escolheste o tempo livre, a competência e a vontade deles para te amar, nutrir e educar. Muito importante também para a nossa história é o facto de não teres escolhido as ideias mais prevalentes do meio onde cresceste. Ainda que mais tarde possas vir a ter ideias muito diferentes das pessoas que te educaram, as ideias e envolvimento político deles têm uma considerável influência sobre ti – tanto na probabilidade de ires votar,, como em quem vais votar.12 Podias ter nascido numa família de comunistas, ambientalistas, neo-nazis, socialistas, cristãos, muçulmanos, artistas, capitalistas ou ateus – seriam tudo vidas diferentes.

No caso da lotaria social não vamos calcular as probabilidades mas se quiseres podes pensar em todas as paridelas13 da história da humanidade e pensar que podias ter sido tu a nascer em qualquer uma delas.14

Ponto de Situação, Pá (1min)

Na lotaria genética calharam-te os teus genes: os de sobrevivência funcional que todos temos em comum, e um primeiro rascunho da paleta de cores que te distingue. Na lotaria social calhou-te a tua família, cultura, país, e o momento da história em que vais nascer. Tudo isto já está definido e tu ainda és um amontoado de células acabado de fazer. Tenho muito orgulho em apresentar-te o início daquilo que vai ser o modelo global da história das tuas opiniões:

Até chegarmos às tuas opiniões ainda vamos construir muito sobre ele acrescentando coisas como a intuição e a razão. Para mim vai ser uma grande viagem, espero que também gostes.15

Como qualquer modelo cognitivo ou modelo do cérebro, o nosso modelo global será sempre uma aproximação da realidade. Nunca nos podemos esquecer do primeiro ponto do Despolariza: Quase tudo é mais complexo do que parece.

Mesmo que o nosso modelo ficasse por aqui, o exercício de contemplar estas duas lotarias já é um grande exercício de despolarização! É uma excelente ferramenta para nos ajudar a tratar pessoas com opiniões diferentes das nossas com mais empatia e compreensão.

“Comprometi-me a não rir das ações humanas,
não chorá-las nem odiá-las.
Antes tentei compreendê-las.”
– Baruch Spinoza, Tractacus Politicus, 1676 16

No próximo post as pessoas com quem cresceste vão começar a pintar o quadro da tua vida. Os teus primeiros traumas, as tuas primeiras gargalhadas.
Acho que vai ser bonito pá!


Quando os moderados ficam em silêncio, os polarizados controlam o mundo.
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  1. E não tens demérito quase nenhum naquilo que não és.

  2. Tecnicamente nesta altura ainda se chamam oócitos mas para simplificar aqui vamos utilizar sempre a palavra óvulo.

  3. Se estiveres confuso sobre o significado de “material genético” ou precisares de relembrar como isso funciona este vídeo de 4 minutos com uma musica um bocado irritante é uma boa maneira de o fazer.

  4. Repara que no caso do teu pai não estamos a contabilizar o número total de espermatozoides que ele criou ao longo da vida inteira – só os que sairam naquela noite.

  5. Em inglês seria 1.2 quadrillion mas em português os números grandes são uma confusão pá. Não gosto.

  6. Espessura da folha: 0.1mm

  7. Se quisesses olhar para todas as folhas de UMA torre, e demorasses 1 segundo por folha sem parar para comer nem dormir, demorarias 121 675 anos.

  8. Há 120 mil anos o Deserto do Saara tinha rios e vegetação densa

  9. Aqui não há nada de jeito.

  10. Sobre isto resta apenas partilhar contigo que a razão pela qual caí para trás e fiquei a olhar para o tecto do meu quarto com a mão na testa não foi este número sozinho.

    Foi perceber que isto é a probabilidade de tu existires assumindo que os teus pais já existem, já se conheceram e já decidiram reproduzir. A probabilidade geral de tu existires é infinitamente menor. Terias que aplicar todos os cálculos acima (312 torres até a lua) para cada um dos teus antepassados também existirem e fazer esse exercício até ao início da vida neste planeta. Mesmo depois de fazeres isso tudo, ainda faltaria entrar com a probabilidade de todos os casais que são os teus antepassados (incluindo casais de muitos animais) se terem conhecido e terem reproduzido uns com os outros. Há 80 milhões de anos, um rato do qual todos descendemos (Avô Rato) deu uma trinca a outro rato, venceu uma batalha, e montou uma ratazana para que eu, tu, Jesus, Hitler, este senhor, e toda a história da nossa humanidade pudesse existir. Em última instância, a probabilidade de tu existires depende da probabilidade do Big Bang ter acontecido. Caraças.
    Obrigado por teres lido este aparte! Tenho que escolher bem o que deixo lá fora na página principal para não ficar muito grande e assustar quem acabou de chegar. Lembrei-me agora que era lindo aqui dentro das bolinhas haver um romance inteiro a acontecer paralelo ao texto principal. Prémio Nobel no mínimo. Siga continuar 🙂

  11. Ele é um dos grandes responsáveis pela polarização. Mais tarde vamos ver isso. Viva ao pessoal que lê estas bolinhas! Vocês são os maiores.

  12. Esta outra publicação sugere que se te sair na lotaria social seres o filho mais velho é mais provável ires votar.

  13. palavra espectacular e tecnicamente correcta

  14. No ano passado em Calcutá, num dos nossos dias em missão pela Kolkata Relief, uma mulher sem-abrigo que já nos conhecia pôs um bébé com poucos meses nas nossas mãos. A senhora tinha encontrado o bébé abandonado na rua e não tinha como o ajudar. Na altura tirei esta fotografia para mostrar aos meus irmãos médicos as marcas que o bébé tinha na cabeça.

    Mais tarde descobrimos que a mãe daquele bébé não só era sem-abrigo, como também não tinha marido, tinha uma doença mental, e era prostituta. Acabámos por encontrar uma solução para a criança – com a ajuda das outras mulheres sem-abrigo conseguimos que o bébé chegasse até a Avó. Nenhum de nós teve mérito em não nascer na família onde este bébé nasceu. Nesse momento, como muitas vezes me acontece, lembrei-me da sorte que tive na lotaria social.

  15. Tal como foi acontecendo ao longo deste artigo, a construção deste modelo vai ser sempre baseado em publicações científicas peer-reviewed de jornais relevantes e respeitados. Para além disso, neste projecto quando eu der uma opinião pessoal quero que seja muito claro que o estou a fazer. Se alguma vez não for totalmente claro por favor chamem-me à atenção nos comentários!

  16. “I have striven not to laugh at human actions, not to weep at them, not to hate them, but to understand them”. Tradução minha.

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