Este é o terceiro capítulo d’A História das Tuas Opiniões.
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No fim do capítulo anterior ainda eras uma pequena catota de células do tamanho de um ponto final mas já tinhas jogado duas lotarias que definiram uma grande parte da tua vida.

Estávamos prontos para começar a pintar o quadro da tua vida, mas debatemo-nos com a seguinte questão: Quando é que começaste a ser tu a pintá-lo? A decidir as tuas ações? Para responder a isso é útil dividirmos a tua vida em três fases no que toca ao grau de livre arbítrio.1 Siga explorá-las pá.
1) Fase Pré-Consciente (2min)

Não sabias que existias. Durante toda a fase pre-consciente não tiveste qualquer controlo, mérito, ou culpa naquilo que te aconteceu. Zero livre arbítrio. Nesta fase reagiste aos ambientes e situações que foram passando por ti puramente de acordo com instintos programados nos teus genes. Para além de reagir estiveste a aprender sobre o mundo. Dentro do leque de possibilidades permitidos pelos teus genes, tudo em ti foi-se moldando física e psicologicamente, preparando-te para um mundo igual àquele experienciaste nesta fase.
Vários estudos demonstram que durante o primeiro trimestre de gravidez (aquela fase em que parecias um feijão frade) níveis elevados de stress na mãe prevêem uma criança com maior probabilidade de vir a desenvolver problemas emocionais e cognitivos. Isto significa que o quadro da tua vida começou a ser pintado muito antes de teres nascido.
Vamos falar do meu quadro. Suponhamos que a minha Mãe teve uma grande discussão com o meu Pai quando eu tinha 2 meses de gestação. Foi horrível. Níveis de stress altíssimos. O resultado foi o meu primeiro trauma, os primeiros traços no quadro da minha vida.

Depois vamos supor que eu tive um resto de gestação absolutamente perfeito. A minha mãe esteve sempre calma, bem alimentada, amada, e cheia de coisas saudáveis no sangue, até que veio aquele trauma que todos temos em comum – o parto.2

A nível de livre arbítrio, nascer não muda absolutamente nada – continuas a ser um escravo dos teus instintos (programados nos teus genes). Há uma cópia deles em todas as tuas células e eles vão estar atentos a tudo e ajudar-te a sobreviver. És apenas um veículo que eles estão a usar para se conseguirem reproduzir um dia mais tarde. Na prática vais ser a marioneta deles.




Graças aos teus genes conseguiste chorar e rir nos momentos certos para ajudar quem cuidou de ti a saber quando te dar de comer, beber ou pôr a dormir. Por muito que eles também sejam responsáveis por certos comportamentos egoístas, é graças aos teus genes que estás vivo.3
2) Fase Criança (3min)

Lá para os 3 ou 4 anos todos nós tivemos um momento surreal – ganhámos consciência.4 Pessoalmente tenho imensa pena de não me lembrar porque seria o momento mais perfeito para usar este GIF:

Percebeste que existes. Se calhar aconteceu-te quando te viste ao espelho numa tarde sossegada de outono. Talvez tenha sido quando te explicaram o que era a morte. Pode ter sido mais gradual ou mais de repente. A verdade é que foi um processo irreversível – mas será que desenvolveres esse tipo de consciência te deu livre arbítrio?5
É na Fase Criança que começamos a conseguir lutar contra os nossos instintos, mas sempre de forma muito condicionada pelos nossos educadores. No início desta fase, a tua capacidade de ir contra os teus instintos não é muito mais complexa do que a de um cão que consegue esperar até o dono dizer “já pode” antes de emborcar uma tijela de comida. O cão não tem livre arbítrio – foi treinado e está condicionado.
Eu tenho uma memória do início dessa fase.

Devia ter uns 3 anos e o plano era irmos acampar nessa tarde – eu, os meus dois irmãos mais velhos, e o meu pai. Estava tudo bem encaminhado… até eu fazer um xixi na cueca. Ca burro. Eu já sabia fazer xixi no pote mas era uma habilidade recente na minha vida, então por preguiça, hábito ou distração, fiz aquele xixi. Resultado? Fiquei de castigo em casa. Desolado. Lembro-me vivamente de estar a chorar a ver os meus irmãos de mochila às costas a sair pela porta da frente. A minha mãe reconfortou-me e nunca mais fiz xixi nas cuecas (pelo menos que possa admitir aqui publicamente.) Quer eu chame esse episódio um trauma ou uma aprendizagem, a verdade é que ele ficou bem impresso no quadro da minha vida.

Passado um ou dois anos deixei cair uma caixa de fósforos e quando a minha mãe me pediu para os apanhar enganou-se a pronunciar a palavra “fósforos”. Como eu já tinha a mania que era espertinho respondi “ESFÓSFOROS MÃE? ESFÓSFOROS?” Os meus irmãos riram-se mas de resto não me correu nada bem. Para além de apanhar os fósforos todos ainda apanhei uma sapatada no rabo e fui para o quarto de castigo. Esse incidente contribuiu para o ensinamento (ou condicionamento) de que não se deve gozar com um pai ou mãe como se fosse da nossa idade. Provavelmente mudou a forma como tratei pessoas mais velhas para o resto da minha vida. Embora eu não tenha escolhido ser um espertinho gozão com 6 anos, nem tenha escolhido uma mãe com esses valores, esse ensinamento/episódio ficou marcado no meu quadro.

E assim, a minha infância foi passando.
À medida que fui crescendo desenvolvi uma coisa milagrosa e perigosa chamada razão, que terá um capítulo próprio mais à frente.
Nestes anos também fui ouvindo os meus pais a falar, vendo o exemplo deles, e construindo a minha estrutura de valores, que também será explorada mais à frente.
Quando tinha 12 anos aconteceu uma tragédia à nossa família. A minha mãe morreu num acidente de carro. Dentro daquilo que são as capacidades limitadas para interpretarmos o quadro da nossa própria vida, diria que é o meu maior trauma. Decidi partilhar isto convosco porque é um exemplo perfeito da forma como certas coisas do nosso passado nos vão afectar para sempre. Representei-o na vertical porque é transversal à minha vida. É um trauma que se manifesta sempre que alguém próximo deixa de receber mensagens ou atender telefonemas durante algum tempo – o meu cérebro foge imediatamente para a hipótese de ter havido um acidente de carro.67

Tão ou mais importante do que as memórias que temos são todas as coisas que moldaram a nossa personalidade das quais não nos lembramos. Tudo o que eu desenhei no quadro com corações ou padrões, na verdade foram lágrimas, risos, abraços, sustos, experiências, derrotas, vitórias e tudo o que existe na experiência humana até aos 13 anos.8
3) Fase adolescente até morrer. (3min)

Estamos a avançar bem! Neste capítulo começaste catota e já viraste adolescente. Parabéns pá – se fores Português(a) então provavelmente já tens buço.9
Durante estes anos todos foste uma esponja das ideias e dos exemplos aos quais foste exposto, sem grande capacidade para questionar a autoridade.
Lembras-te da paleta de cores dos teus talentos? Dependendo das actividades que te puseram a fazer e das experiências que viveste, algumas cores ficaram cheias de força e outras ficaram baças. Se aceitarmos que tens livre-arbítrio, isso significa que finalmente vais poder usar a paleta de forma activa – talvez consigas influenciar a parte do teu quadro que ainda está por viver.
Siga então revisitar o modelo das tuas opiniões para vermos como ele era quando tu finalmente começaste a ter algum controlo sobre a tua vida e sobre os teus pensamentos.10

Se o livre arbítrio existe, então só a partir deste momento é que me parece razoável propô-lo como hipótese.11 Se pensarmos bem isso tem uma implicação forte! Se a parte de ti com verdadeira capacidade para pensares por ti próprio só nasceu agora, então na verdade os primeiros 13 anos de vida também foram uma lotaria fora do teu controlo! Podemos juntar tudo o que te aconteceu até agora numa só lotaria: a MEGA LOTARIA GS13 (Genética, Social, e tudo o que te aconteceu nos primeiros 13 anos).


Podia-te ter calhado qualquer bola.
Numa das bolas tens ótimos genes; pais afegãos, pobres, sem educação; e quando começaste a pensar por ti estavas no dormitório de uma escola para bombistas-suicida dos Talibã onde vives desde os seis anos.
Noutra das bolas tens trissomia-21; os teus pais são Eslovenos de classe média; e quando começaste a pensar por ti jogavas futebol oito horas por semana porque o teu pai queria que jogasses com os melhores.
Noutra bola começaste a tua vida de pensador com os teus genes; com os teus pais/educadores; e com o quadro da tua vida inteira até aos 13 anos.
Calhou-nos um nível diferente do jogo a cada um.
Falar frequentemente sobre a Lotaria GS13 é uma excelente forma de desenvolver humildade intelectual, tolerância, e uma sociedade menos julgadora – tudo objectivos deste blogue despolarizador.
Por teres lido os últimos dois capítulos tenho o prazer de te entregar mais uma Ferramenta Despolarizadora: A LOTARIA GS13.
Mereceste-a. Leva-a a contigo para todas as conversas e debates do resto da tua vida. Para que nunca te esqueças que ninguém escolheu as ideias, exemplos e traumas com os quais foi condicionado até aos 13 anos.
Convido-vos a viajarem comigo enquanto coleccionamos mais Ferramentas Despolarizadoras. O objectivo é aprendermos a dialogar melhor uns com os outros. É do interesse de todos protegermos a democracia da polarização – sozinho não vou chegar muito longe! Preciso das vossas partilhas e do vosso input. Até porque, no final de contas, uma Democracia é tão forte como a qualidade dos diálogos que nela residem.
Quando os moderados ficam em silêncio os polarizados controlam o mundo. Se gostaste deste post, por favor partilha 💙
Livre Arbítrio: possibilidade de decidir em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante.↩
Deve haver poucas coisas piores! Estavas num casulo quentinho a boiar, protegido e sem necessidade de mexer uma palha para comer nem respirar. Um dia, começas a ficar sem água, a sentir níveis de stress altíssimos, e depois de sentires a cabeça a ser esmagada durante uma boa meia hora vais parar a um sítio cheio de luz e barulho, onde tens que respirar por ti e ficas logo cheio de fome. Não desejaria ao meu pior inimigo.↩
Também é graças a eles que estiveste a respirar desde manhã sem teres que pensar nisso.↩
Existe debate à volta da idade precisa e da definição de consciência. Eu baseei-me no modelo do Philippe Rochat↩
Aqui entramos numa questão que se situa entre a neurologia, a psicologia e a filosofia. Eu acredito que não, e um dia hei de escrever um artigo só sobre isso, mas neste contexto a minha opinião não interessa para nada. O objectivo da História das Tuas Opiniões não é definir quando (ou se) o livre arbítrio realmente existe – é utilizar a ciência e a escrita despretensiosa para desenvolver abertura e empatia perante opiniões diferentes, entendermos que somos escravos de instintos tribais antiquíssimos, e percebermos que a nossa opinião não é assim tão nossa quanto isso.↩
Provavelmente este trauma manifesta-se de muitas outras formas subconscientes que, por definição, não consigo identificar.↩
A partir de agora vamos colocar a casa que te saiu na lotaria social dentro do quadro da tua vida porque foi ali, nos primeiros anos da tua vida, que essa lotaria teve a maior influência.↩
Esta lista de emoções, se for lida com voz fiteira, parece um bocado um anúncio da Superbock – só falta lá para o meio “verão”, “praia”, e “amigos”.↩
<3↩
Vou usar o meu quadro como símbolo mas convido-te a imaginares os teus episódios equivalentes de xixi, fósforos, e traumas transversais.↩
Ainda assim, o próprio processo de activação hormonal desta tua fase estava programado nos teus genes. Nunca te vais conseguir livrar completamente deles.↩